Campos de concentração da seca e o livro "O Quinze" de Rachel de Queiroz

15:27

  É com recorrência que vemos notícias em jornais sobre as secas no sertão, afinal, elas ocorrem desde 1877 (que temos conhecimento), seca essa que ficou conhecida como "A Grande Seca do Império" e que matou mais de 500 mil pessoas. Esse evento pode ser comparado com o Dust Bowl que ocorreu durante a Grande Depressão dos Estados Unidos e que devo comentar em um próximo post. Por enquanto vamos nos atentar ao Brasil e à literatura brasileira que colocou a questão da seca em palavras para ultrapassar o limite territorial do Polígono das Secas.

O Polígono das Secas é uma região demarcada desde 1936, com complementação em 1946 (lei n° 175 e decreto-lei n° 9.857, respectivamente), que compreende áreas sujeitas à crises de estiagens com repetição. Portanto, essa área demarcada deve ser objeto de tomada de medidas especiais para combate à seca e ações emergenciais para apoio aos habitantes. O polígono é uma área de mais de 1 milhão de km², com 1.348 municípios que fazem parte dos estados: Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe, e parte do norte de Minas Gerais.

O especialista Aziz Ab'Sáber, em sua publicação de título "Sertões e sertanejos: uma geografia humana sofrida", diz que regiões semi-áridas como essa só existem 3 na América do Sul, e todas são similares em algumas características, como: 

                "(...) baixos níveis de umidade, escassez de chuvas anuais, irregularidade no ritmo das precipitações ao longo dos anos; prolongados períodos de carência hídrica; solos problemáticos tanto do ponto de vista físico quanto do geoquímico (solos parcialmente salinos, solos carbonáticos) e ausência de rios perenes (...)"

De acordo com o Monitor de Secas (programa que há 10 anos acompanha regularmente a situação das secas no Brasil), as secas teriam ficado mais brandas no Norte e Nordeste do país em 2024. Onze estados da federação tiveram menores secas entre fevereiro e março do ano passado, sendo que treze registraram redução da extensão da seca, enquanto sete outros se mantiveram estáveis. Aparentemente, o centro-oeste avança em secas agora, mesmo que o Amazonas ainda tenha a maior área atingida. 

Muito do porquê a seca está menos intensa no Nordeste é devido à atuação do El Niño junto das mudanças climáticas. O El Niño é responsável por criar bloqueios atmosféricos e reduzir a formação de nuvens e chuvas. Com as mudanças climáticas tornando tudo mais intenso e as temperaturas aumentando, a perda de água por evapotranspiração é certa e ainda sem nuvens para reter esta umidade.

Portanto, apesar da redução da seca no Norte e Nordeste ser algo bom, é preocupante pensar que hoje a seca na verdade está avançando sobre todo o país, passando não apenas a ser algo natural, por conta de características geográficas da área (como o que ocorre no polígono das secas), mas por conta da atuação humana. 

As secas no polígono são recorrentes e sabemos que, caso medidas públicas não sejam tomadas para reduzir os efeitos das mudanças climáticas ou atuar na adaptação das comunidades à elas, ela poderá fazer grandes estragos como já fez em 1877, 1915, 1932...

Em 1877, a Grande Seca do Império, começou em 19 de março mas perdurou até 1879. Nestes três anos de seca, 500 mil pessoas morreram de fome, sede e doenças, cerca de 5% de toda a população da época. O Parlamento aprovou diversas leis durante esses três anos para conseguir destinar verba ao socorro da população, verba essa que foi aplicada na compra de alimentos básicos. Diz-se que Princesa Isabel na época realizou diversas ações filantrópicas para arrecadar dinheiro e doar ao império do norte (o governo se dividida em Norte e Sul), além de que deputados tentaram aprovar a destinação de recursos das loterias para acudir a população que enfrentava a seca, porém a ideia foi rejeitada.

Flagelados da Grande Seca fotografados num estúdio de Fortaleza / J.A. Correa, Acervo da Biblioteca Nacional / Retirado de El País 

Ao mesmo tempo, também foi iniciado o discurso de "não se deve dar o peixe, mas ensinar a pescar", graças a um senador de Goiás, que se colocava contra a destinação de verbas à população na miséria. Veio daí a ideia que seria depois replicada tanto em 1915 como em 1932: colocar pessoas à míngua para trabalharem em obras públicas em troca de alimento. 

Em 1915 isso se repetiu e com um agravante, as pessoas que chegavam até Fortaleza em busca de melhores condições de vida foram direcionadas (de forma nada auxiliadora) ao chamado Campo de Concentração do Alagadiço. Isso porque a elite da época (políticos, médicos, jornalistas...) se incomodavam com os retirantes nas praças e em locais públicos da cidade, justificando que doenças poderiam surgir, assim como violência e roubos. Em 1877 isso já havia sido visto, os retirantes acabaram se alocando na periferia de Fortaleza e, sem boas condições de moradia, iniciou-se uma epidemia de varíola. Na época, aparentemente, 110 mil pessoas fizeram esse êxodo em direção à Fortaleza. Para evitar que outras epidemias pudessem ocorrer, em 1915 quando a seca assolou o sertão, o governo decidiu construir esse campo de concentração, com a justificativa de que as pessoas teriam auxílio ali, alimentos, moradia e etc. Ao criar este campo a construção já foi feita com o intuito de afastar qualquer tipo de "doença", que os retirantes poderiam trazer, da cidade grande, já que o campo foi alocado onde o vento iria para a direção contrária da cidade. A comida (chamada da ração) não era o suficiente para ninguém, assim como os remédios e as vacinas. Não havia saneamento básico, não havia higiene, e aos poucos as pessoas começaram a morrer por fome ou doenças. Os homens eram levados para trabalharem em obras públicas, mas até mesmo o salário que ganhavam não era o suficiente para saírem daquelas condições.

Rachel de Queiroz publicou seu primeiro livro "O Quinze" em 1931, contando uma história de 15 anos atrás, justamente da seca de 1915. Mal sabia ela que em 1932 tudo recomeçaria e o tratamento ao povo conseguiria ser ainda pior. Os retirantes, dessa vez, foram alocados em 7 novos campos de concentração da fome, a maioria distantes de Fortaleza. Homens, mulheres e crianças foram empregados em obras públicas que começaram a ser feitas com o dinheiro de verbas que eram enviadas pelo governo federal (Getúlio Vargas na época) para socorrer a população. O dinheiro claramente foi desviado, construção de açudes foram feitos em fazendas privadas, a cidade de Fortaleza estava recebendo muitos turistas e com a ideia de "evolução e modernização" da elite, obras na cidade começaram a ser feitas, como praças e troca de iluminação, tudo para atrair ainda mais os turistas. 

Arquivo Nacional: "Que república é essa?" Campos de Concentração no Brasil: os campos da fome.

O romance da autora cearense, lançado aos seus 20 anos, apesar de já ter mais de um século de existência, continua representando a realidade de muitas pessoas que sofrem com a seca e que muitas vezes são ignoradas pelo poder público até mesmo de sua própria região. Uma ficção que nos permite conhecer uma realidade histórica que não devemos repetir.

Imagem do Grupo Editorial Record, responsável pela publicação do romance.

Caso se interesse na leitura do livro "O Quinze", ele está disponível na Amazon com um desconto de 36% (dia 06/01/2025).

*As referências de pesquisas podem ser encontradas nos links citados ao longo do texto.

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1 comments

  1. Eu fiquei bem abalada com toda essa história e muito me surpreende que pouquíssimo seja falado sobre. As vezes nem é tanta surpresa assim, a omissão tem seu propósito.

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